Kaingangs iniciam reflorestamento de terra indígena disputada com produtores rurais

Ação ambiental na Terra Indígena Rio dos Índios começou com o plantio de 300 araucárias e 500 árvores frutíferas

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Mutirão de plantio de mudas envolveu alunos de escola e toda a comunidade indígena. Foto: Patrícia Bohrer / Instituto Curicaca

Sul 21 – Pouco mais de um ano após o governo federal homologar a Terra Indígena Rio dos Índios, no município de Vicente Dutra, no noroeste do Rio Grande do Sul, a comunidade de cerca de 230 pessoas da etnia kaingang deu início a um audacioso projeto de reflorestamento em parceria com o Instituto Curicaca. Dos 713 hectares homologados, os indígenas estão ocupando, atualmente, pouco mais de 100 hectares devido a uma liminar da Justiça, movida por políticos e ruralistas locais, que impediu os trabalhos da Funai de indenização das famílias que ocuparam de boa fé a área demarcada.

Enquanto a disputa jurídica não se resolve, a comunidade de Rio dos Índios decidiu colocar em prática toda a relação ancestral dos kaingangs com a natureza, uma cosmogonia na qual árvores e animais são compreendidos como a “metade espiritual” dos indígenas.

Professora da escola existente dentro da terra indígena, Liziane Salvador, de 31 anos, explica que antes da homologação, a comunidade já vinha trabalhando a questão do meio ambiente, porém numa área bem menor, em 7 hectares ocupados por 47 famílias, Por falta de espaço, o trabalho ambiental se concentrava na questão do lixo e no cuidado com as árvores, incluindo o manejo das taquaras, fontes da produção de artesanato.

Agora, com a homologação, o território cresceu e, junto, a oportunidade de expandir as ações ambientais. Tendo a escola como um dos pilares da comunidade, as lideranças indígenas decidiram aproveitar a tradicional atividade de jogos com os alunos e usar como data para o mutirão de plantio e início da restauração. “Como nossa comunidade se importa muito com a questão ambiental, de proteger, reconstruir e revitalizar, a gente conseguiu um acordo com o Curicaca onde um completa o outro”, conta a professora.

Após a primeira ação de plantio de mudas, o plano é que a data dos jogos seja usada todo ano para novos mutirões de reflorestamento. A intenção é plantar 500 mudas de árvores nativas e frutíferas, sempre com a participação dos alunos. A escola tem hoje 198 estudantes, incluindo alunos do ensino fundamental, médio e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Os jogos deste ano, com o tema “Sem território não há vida”, foram os primeiros realizados depois da pandemia do novo coronavírus. “O pessoal já tinha esquecido de como era importante revitalizar os costumes, as crenças, o saber de como plantar uma araucária na nossa cultura. Tem uma função, não é plantar por plantar. Foi bem importante porque os mais velhos já começaram a falar que tem uma forma de plantar, os alunos já começaram a se mobilizar para fazer desenhos para demonstrar como foram os jogos. A consciência de reflorestamento foi bem importante e os adultos, que sabem mais do que as crianças, conseguiram se envolver e participar”, celebra. “A gente só precisava de um território para reconstruir o que já tinha sido tirado dali.”

Ela explica que a comunidade kaingang da Terra Indígena de Rio dos Índios compreende a questão do reflorestamento e o cuidado com o meio ambiente pela perspectiva da natureza ser como uma mãe para eles, vital para a sobrevivência do povo. A professora diz que o cacique Luís Salvador se preocupa muito com o tema do reflorestamento e que o assunto seja trabalhado nas escolas. A terra é a vida e, sem ela, não tem árvore, não tem rio.

 

Mutirão de plantio de mudas envolveu alunos de escola e toda a comunidade indígena. Foto: Patrícia Bohrer / Instituto Curicaca

Professora indígena destaca a participação das crianças no reflorestamento. Foto: Patrícia Bohrer / Instituto Curicaca

Coordenador técnico do Instituto Curicaca, Alexandre Krob explica que a entidade desenvolve há anos um trabalho de conservação da onça pintada no Parque Estadual do Turvo, associado a uma estratégia de corredores ecológicos que interconectam as áreas protegidas, ligando o Parque do Turvo com territórios indígenas da região, que são as principais áreas ainda conservadas.

A estratégia de conservação da onça e a implantação dos corredores ecológicos levou ao início do trabalho de restauração florestal. As cinco terras indígenas (TI) existentes na região, incluindo as de Nonoai e Guarita e, agora, a de Rio dos Índios, são chamadas pelos ambientalistas de “núcleos de interconectividade” para ancorar os corredores ecológicos. A TI Rio dos Índios já estava no horizonte do Instituto Curicaca desde 2020. A terra foi demarcada pela Funai em 2004, com área total de 713 hectares.

“Essa área de Rio dos Índios entrou como um núcleo para os corredores ecológicos e começamos a implementar as ações de restauração do corredor em 2022. Quando o Lula homologou as primeiras seis áreas indígenas desse novo mandato, em 2023, a gente ficou super feliz que a de Rio dos Índios, que já estava no corredor e a gente queria se aproximar, foi uma das homologadas”, explica Krob. Os corredores ecológicos abrangem uma grande área de quase 50 municípios, a maioria no Rio Grande do Sul e alguns em Santa Catarina.

Dentro dos 100 hectares atualmente ocupados, o cacique Luís Salavador tem a intenção de fazer o reflorestamento ser protagonista. Os kaingangs têm uma grande relação espiritual com as plantas e os animais e, devido a essa visão da natureza, o reflorestamento tem tido destaque na organização da comunidade indígena. Krob ressalta que o processo de restauração está no início. Há a intenção de que o trabalho possa ser expandido futuramente quando for solucionada a disputa jurídica envolvendo o território. “Estamos juntos com os kaingangs na ocupação desse território indígena, juntos com a comunidade, com as árvores e a floresta.”

As mudas que estão sendo plantadas variam, dentro de uma estratégia de espécies adaptadas ao contexto. O reflorestamento leva em conta a composição do ambiente natural, considerando as espécies presentes na região. “A gente está respeitando a vontade deles numa construção conjunta que envolve valores culturais e modos de vida. É um pouco diferente do jeito do branco plantar”, explica o coordenador do Instituto Curicaca. “Eles tinham interesse na araucária, pelo significado simbólico, cultural e de tradição, pela relação com o pinhão, então a gente iniciou o trabalho com o plantio de trezentas araucárias. A gente plantou numa área que vai virar um sistema agroflorestal, porque vamos associar com a erva-mate e outras coisas que possam coexistir com a araucária.”

Além da araucária associada com a erva-mate, as árvores frutíferas foram outro pedido dos indígenas para consumo próprio e da fauna. E assim já foram plantadas 500 mudas. A intenção é realizar outros mutirões de plantio ainda esse ano. No caso da araucária, a estimativa é de que a árvore leve cerca de 20 ou 25 anos para começar a fornecer pinhão. Entre as frutíferas, uma pitangueira, cerejeira, araçá ou guabiroba produzirão os primeiros frutos em torno de 4 ou 5 anos.

 

Um novo mutirão de plantio deve ocorrer até o final do ano. Patrícia Bohrer / Instituto Curicaca

Boa parte da área retomada pelos kaingangs e que deu origem a terra indígena vinha sendo usada para produção agrícola de cultivos variados. Há algumas “manchas” de florestas remanescentes, mas há principalmente muitas áreas de lavoura. Conforme análise de cobertura feita pela equipe de geoprocessamento do Instituto Curicaca, dos 713 hectares da terra indígena, cerca de 200 ou 250 são de florestas, ou seja, um terço do território, com o resto sendo passível de restauração.

“Estamos trabalhando com o imaginário de poder restaurar 500 hectares, sendo que grande parte é restauração a partir do zero, em áreas de lavoura, e tem uns 80 hectares de áreas florestais em estado inicial”, explica Alexandre Krob.

O coordenador do Curicaca destaca o respeito e os valores da cultura kaingang, com forte resistência e resiliência da comunidade indígena que há tempos luta por seu território. Ao mesmo tempo, a demarcação da Terra Indígena Rio dos Índios, em 2023, ainda não encerrou a longa disputa. O conflito com os antigos proprietários de partes da área ainda continua. “Estamos entrando num contexto de disputa, por meio da restauração da floresta, dos usos e modos de vida deles. A gente está discutindo a escolha das espécies que vão ser plantadas para dar suporte ao artesanato, aos rituais, à medicina. É uma coisa que dá outra dimensão, uma restauração muito orgânica, na complexidade da ecologia profunda.”

Se antes da homologação, quando as famílias ocupavam apenas 7 hectares, a consciência ambiental e a relação com a natureza já era forte na cultura kaingang, a comunidade de Rio dos Índios pode agora expandir tal cuidado para um território muito maior. A forma de demonstrar cuidado com a natureza, para os kaingangs, é reflorestando e expandindo tal consciência na comunidade.

“Nossa conexão com a natureza é muito mais do que cuidar dela, é a nossa vida, nossa forma de viver, porque nossa comunidade depende muito do artesanato e o nosso artesanato vem da natureza. Então seria mais uma forma de vida, de sobrevivência e uma forma de economia também porque os nossos artesanatos saem tudo da natureza, é a fonte de renda que nossa comunidade tem”, afirma a professora Liziane, já ansiosa pelo próximo mutirão de plantio.

 

Patrícia Bohrer / Instituto Curicaca
Patrícia Bohrer / Instituto Curicaca
Patrícia Bohrer / Instituto Curicaca

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