Danos estruturais, umidade, doenças: Água começa a baixar e novos desafios se apresentam

A limpeza é só o primeiro passo enfrentado por quem, enfim, consegue retornar ao lar após a enchente

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Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Sul 21 – Pelas marcas na parede da casa da avó Luiza, a museóloga Sofia Perseu, de 26 anos, estima que a água tenha chegado a 1,5 m. “Não era nem água do Guaíba, era puro esgoto. Veio tanto dos bueiros da rua, da parte de fora, quanto de dentro da própria casa, saindo pela torneira, pelos ralos, pelo vaso dos banheiros. Foram muitas perdas: móveis, tapetes, roupas, documentos. Foi impressionante ver a força da água, porque muitos móveis estavam derrubados no chão. A geladeira ficou boiando com os alimentos mofados. É um cheiro inesquecível”.

A residência fica no bairro Menino Deus, de onde dona Luiza precisou sair no dia 3 de maio. Agora a rua Rafael Saadi, onde fica a casa, está seca. Mas o local começou a alagar antes mesmo do desligamento da casa de bombas da região, que causou a inundação dos bairros Menino Deus e Cidade Baixa, no dia 6. Na opinião da neta, uma limpeza pesada não vai ser suficiente para que o local volte a ser habitável.

Já a estudante de Publicidade e Propaganda Maria Eduarda Konzen, 19 anos, que mora em um apartamento térreo no bairro Cidade Baixa, percebeu várias bolhas nas paredes quando voltou para o local. “A porta do meu quarto estava com muito mofo, tivemos que tirar porque estufou. O quarto em si, com bastante mofo também”.

Maria Eduarda calcula em 1,7 m a altura da água, que a fez perder a maior parte da mobília. “O processo de limpeza está sendo bem cansativo, porque é muita lama, é muita água, é muita sujeira. Mas, felizmente, eu estou tendo ajuda dos vizinhos e de familiares. Já estamos em três, quatro dias de limpeza”, relata.

O engenheiro Rogerio Severo, especialista em saneamento e engenharia ambiental de obras civis e representante do Sindicato dos Engenheiros (SENGE RS), explica que o impacto da água se dá principalmente no solo. “Circulam imagens de estradas onde parece que o asfalto ‘rachou’, e parece que ele quebrou todo. Na realidade, o rio e a correnteza que acabaram com a base e o solo embaixo do pavimento que cede, e por conta disso desagrega toda a estrutura do pavimento”.

O mesmo tende a acontecer com as edificações, segundo o engenheiro, mas não de uma hora para outra. “Quando as águas começam a evaporar, o solo tende a descer e a fundação de algumas casas cede. Isso se verifica quando, eventualmente, cai uma placa ou outra da parede ou do forro e aparecem rachaduras nas paredes. São os primeiros grandes sinais. A partir disso, tem um tempo para entender se uma construção está segura ou não, por isso a importância da vistoria de segurança ser feita por engenheiros e técnicos”.

A arquiteta e urbanista Inês Martina Lersch, Professora da Faculdade de Arquitetura da UFRGS e Conselheira Federal Suplente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/RS), chama atenção para a umidade remanescente nas edificações. “Estruturas de alvenaria vão ficar por um longo tempo ainda úmidas. Recomenda-se a avaliação de estruturas e espaços por profissionais especializados, a fim de prescrever medidas de correção adequadas para que possam ser usados. Pode haver também uma deterioração dos revestimentos devido à umidade ou ainda processos de proliferação de fungos e outros agentes de degradação dos materiais”. Daí a importância de uma adequada ventilação nos ambientes.

Na casa de dona Luiza, a neta Sofia identificou vários danos permanentes. “A casa, como é muito antiga, já tinha algumas pequenas rachaduras que foram acentuadas. Mas eu não imaginei que as outras partes da casa, que não tiveram contato com a água, iam estar tão danificadas. Tem infiltração por todo o teto, tem goteira, tem mofo. Ainda que agora se limpe, a casa não tem como ser habitada de novo sem uma reforma muito grande e muito cara”, afirma.

É diferente dos deslizamentos de terra que foram registrados em cidades como Gramado e que desmembraram casas inteiras. Conforme Severo, esse fenômeno acontece nos morros. “O solo fica muito úmido, muito pesado e ao mesmo tempo sem aderência entre o solo e a rocha, e ocorre o deslizamento de grandes volumes de solo”, explica.

Moradores de Porto Alegre passaram as últimas semanas se perguntando quando os alagamentos causados pela enchente dariam novamente lugar à Capital de antes. De certa forma, a cidade mudou, e um dos símbolos dessa mudança é a demolição da passarela da Rodoviária para a construção de um corredor humanitário. Com o Guaíba finalmente abaixo de 4,5 m no Cais Mauá, a água começa a baixar e revela um Centro Histórico enlamaçado onde o principal desafio é a limpeza. Embora os prédios da região central não tenham “vindo abaixo”, as edificações vão precisar de atenção especial nos próximos momentos.

Severo integra um grupo de engenheiros que elaborou uma cartilha pós-inundação. O material elenca estratégias que se dividem em restauração de serviços essenciais, reparo de infraestruturas críticas, prevenção de saúde pública, fortalecimento da segurança, análise de riscos e avaliação de danos.

Quando a água for completamente drenada, vai ser seguro transitar pelas vias da Capital, afirma o engenheiro. “Não teremos nenhuma dificuldade de trânsito nas ruas. É o que acontece em qualquer cidade, que num período de chuva muito longo começam a aparecer buracos nas ruas. Mas é resolvido pela manutenção urbana”.

Equipes do DMLU fazem a limpeza do Centro Histórico. Foto: Alex Rocha/PMPAistórico. Foto: Alex Rocha/PMPA

Quando se trata de prédios históricos, caso de muitas edificações no centro de Porto Alegre, a preocupação é com o subsolo das edificações. Em alguns casos, esses espaços guardam o acervo dos museus. “A extensão dos danos será avaliada, mas é preciso avaliar se o material deve voltar a ser colocado nos subsolos”, pontua a professora Martina.

“Não apenas o Centro Histórico: outras áreas da cidade também foram atingidas”, lembra a arquiteta. “Tendemos a imaginar novamente a Feira do Livro na Praça da Alfândega, mas existem várias outras áreas com espaços públicos que são utilizados pelas suas comunidades”. Todas as cerca de 6,8 mil famílias quilombolas do Rio Grande do Sul foram afetadas pelas chuvas e enchentes que assolam o estado, segundo levantamento da Coordenação Nacional da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). A direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também calcula um impacto grande para os que vivem nos assentamentos da região metropolitana. Cinco deles ficaram submersos em decorrência das chuvas.

“Aos poucos vamos retomando a vida cotidiana nos espaços públicos, não mais sem perceber a marca das águas. Ir para a Praça da Alfândega e dizer ‘olha, a água veio até aqui’. Mas tem coisas que têm mais pressa: a fome, a moradia, voltar para casa. Não dá para discutir o retorno ao uso dos espaços públicos sem discutir a proteção da cidade de novas tragédias do tamanho da que estamos vivendo”, afirma a professora Martina.

A leptospirose é uma das principais preocupações quanto à saúde de quem vai acessar espaços que ficaram submersos. A doença é causada por diferentes tipos de bactérias presentes na urina do rato e pode infectar tanto seres humanos como animais, onde fica incubada por mais tempo. “Mesmo que a água baixe, a bactéria consegue sobreviver em média 10 dias onde o lodo está molhado”, explica a professora Ilma Brum, do Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS) da UFRGS.

“Ambientes onde estavam armazenados alimentos que ficaram molhados vão atrair muitos ratos, um meio de disseminação muito grande da leptospirose”, alerta a professora. “É muito importante que seja feita uma boa limpeza. Alguns itens podem ser reutilizados, mas em estofados que ficaram encharcados, por exemplo, é muito difícil retirar todos os contaminantes”.

O Ministério da Saúde tem uma cartilha de orientação à população no período de alerta de chuvas intensas. O material elenca as principais doenças associadas à emergência climática e seus tratamentos. Doenças como diarreia por rotavírus, influenza, meningite, rubéola e tétano acidental podem ser prevenidas por meio de vacinas disponíveis no SUS. As pessoas podem se infectar pelo contato com água ou alimento contaminado ou pessoa a pessoa, principalmente nos ambientes com aglomeração populacional, como nos abrigos. O tétano acidental é adquirido em acidentes com entulhos, principalmente na reconstrução das moradias.

O lixo deixado para trás também aumenta o risco de doenças. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

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