O Ministério Público do Trabalho/RS atualizou para 82 o número de trabalhadores resgatados em duas fazendas de arroz no interior de Uruguaiana, município gaúcho na fronteira com a Argentina, distante 631 quilômetros de Porto Alegre. Na sexta-feira (10), o total divulgado era de 56. Das pessoas submetidas a condições de trabalho análogas à escravidão, 11 são adolescentes com idades entre 14 e 17 anos.
É o segundo maior resgate do tipo ocorrido no Rio Grande do Sul, perdendo apenas para os 207 descobertos na colheita da uva em Bento Gonçalves, Serra Gaúcha, no mês passado. Apenas em dois meses e 10 dias de 2023 já foram encontradas 291 pessoas em situação semelhante ao trabalho escravo no estado, o que representa quase o dobro dos casos constatados em todo o ano de 2022, que já representara, como enfatizaram em nota os procuradores, um “triste recorde”.
Santa Adelaide e São Joaquim – Os resgates aconteceram através de operação conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e Polícia Federal (PF) nas estâncias Santa Adelaide e São Joaquim. Cinquenta e quatro trabalhadores foram resgatados na Santa Adelaide e 28 na São Joaquim.
O grupo era contratado para fazer o corte do arroz vermelho, tido como inço, ou seja, daninho ao arroz cultivado e que provoca perdas à lavoura. O manejo era feito com instrumentos que os próprios trabalhadores deveriam providenciar – muitos usavam apenas uma faca de serra como as de cozinha – e com a aplicação de agrotóxicos.
“Tudo isso das 4h da manhã até as 19h da noite”, comentou a deputada Laura Sito (PT). Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa/RS, ela está em Uruguaiana acompanhando a atuação dos fiscais.
Conforme os depoimentos colhidos pelo MPT/RS, um dos menores sofreu um acidente com um facão e ficou sem movimento em dois dedos do pé.
Aplicando veneno sem proteção – No relato dos procuradores, também fazia parte das atribuições dos contratados a aplicação de veneno pelo método de “barra química”. Nele, dois trabalhadores aplicam o agrotóxico usando uma barra metálica perfurada conectada a latas de agrotóxicos. Tudo realizado sem nenhum equipamento individual de proteção.
Não havia água potável, muito menos refrigeração e, assim, a comida que traziam constantemente estragava. Quando isso acontecia, passavam o dia inteiro sem comer. Eles recebiam R$ 100,00 por dia. Quem adoecia tinha o valor descontado da remuneração. Nota do MPT/RS cita, ainda, que alguns depoimentos tomados no fim de semana também falam de venda de drogas durante o trabalho.
“O que mais ofende, inclusive a nós que estamos habituados a esse trabalho, não é apenas a pessoa ter uma jornada pesada sob o sol, mas é fazer isso com sede, porque o empregador não oferece água, com fome, porque a comida pode ter azedado ou estar infestada de formigas”, disse a Brasil de Fato no fim de semana o auditor-fiscal do trabalho Vitor Siqueira Ferreira. “É fazer esse tipo de trabalho – continuou – tendo que descansar sob a sombra de um ônibus, porque não tem outra sombra disponível.”
Pagando para dormir com os porcos – Todos eram de municípios da região, em especial Itaqui, São Borja, Alegrete e Uruguaiana. Foram recrutados por um “gato”, apelido daquele que agencia mão de obra. O homem foi preso em flagrante, levado a um estabelecimento prisional do estado e liberado após pagar fiança durante o fim de semana.
O MPT e a Defensoria Pública da União (DPU) negociaram o pagamento de três parcelas de seguro-desemprego, de verbas rescisórias, além do registro em carteira de trabalho de todas as vítimas. O MPT vai pleitear também pagamentos de indenizações por danos morais individuais e coletivos.
Além das centenas de casos vinculados à colheita da uva e do trabalho na lavoura arrozeira, na semana passada e novamente no Rio Grande do Sul, a força-tarefa que envolve os ministérios, a DPU e a PF retirou um homem de 59 anos de condição análoga à escravidão. Aconteceu em um sítio de São José do Herval, município do Nordeste gaúcho, situado a 196 quilômetros da Capital.
Trabalhando como caseiro desde 2021, morava em um galpão junto ao chiqueiro. Para morar ao lado dos porcos ele tinha que pagar aluguel. Assim, recebia menos do que o que era cobrado pelo dono do lugar. Tinha, então, que complementar o pagamento com recursos de uma pensão por invalidez – perdera um olho em um acidente anterior. Ex-presidiário, portava uma tornozeleira. Como dera ao sistema prisional o endereço em que trabalhava, não podia se afastar do lugar mais do que 300 metros sem acionar o monitoramento que lhe renderia uma nova ordem de prisão. Desse jeito, não podia denunciar a situação em que estava.
Após o resgate, a vítima recebeu R$ 26 mil a título de verbas rescisórias e direitos trabalhistas. O empregador também deverá pagar mais R$ 18 mil por conta de danos morais individuais.
Dados oficiais, da gerência regional do MTE, sinalizam um avanço constante, especialmente nos últimos três anos, dos flagrantes de trabalho similar à escravidão em solo gaúcho. Se o total de 2020 foi de somente cinco casos, no ano seguinte saltou para 76, escalando os 156 em 2022 e agora roçando os 300 flagrantes.