Em menos de dois anos de existência, a Gibiteca da Biblioteca Pública do Estado (BPE) do Rio Grande do Sul já virou referência para artistas e apreciadores do estilo. Inaugurada em 5 de novembro de 2021, a partir da doação de 2,5 mil exemplares da coleção pessoal do quadrinista e designer editorial Guilherme Smee, que passou a atuar como curador voluntário do espaço, a gibiteca se consolida como espaço de troca, pesquisa e apreciação.
A doação inicial feita por Guilherme foi apenas a primeira de uma série que a seguiu. Logo após a criação, em janeiro de 2022, o espaço recebeu uma doação de 800 mangás feita pela Fundação Japão, organização vinculada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do país asiático que tem por objetivo promover o intercâmbio cultural.
Atualmente, a gibiteca já conta com mais de 8 mil volumes, entre histórias clássicas de super-heróis da Marvel, DC Comics e Sandman — entre outros –, mangás, o francês Asterix, a argentina Mafalda, fumettis italianos, coletâneas de charges e cartuns, obras de veteranos e novos artistas nacionais, como é o caso do próprio Guilherme, autor, entre outras obras, de “Divas Brasileiras”, que conta a história de 10 mulheres que quebraram paradigmas culturais no Brasil ao longo do século XX.
Um dos primeiros estandes da gibiteca é voltado justamente para obras nacionais e locais recentes, entre as quais o curador destaca trabalhos como o “Beco do Rosário”, da quadrinista gaúcha Ana Luiza Koehler, que se passa na Porto Alegre dos anos 1920 e retrata o processo de expansão da Capital, marcado pela desigualdade social e pelo racismo. Outra obra destacada por Guilherme é “Alvorada”, de autoria de Pablito Aguiar, que conta em quadrinhos histórias reais de 23 moradores do município da Região Metropolitana. A obra teve uma sessão de lançamento na própria gibiteca em 2022.
“É preciso tirar esse ranço de que quadrinhos é voltado só para crianças, tanto é que aqui na gibiteca a maioria dos quadrinhos não são para crianças. Os quadrinhos infantis estão em outro espaço, na biblioteca infantil da Casa de Cultura Mário Quintana. Então, acho que o trabalho da gibiteca também é conscientizar que existem quadrinhos para todos os tipos de pessoas, com todos os tipos de temas, como na França é sabido disso, ou como no Japão, onde existem mangás para pessoas de idade avançada ou para bebês, por exemplo”, diz Guilherme.
O curador pontua ainda que a presença dos quadrinhos na Biblioteca Pública é uma forma de enfrentar os estigmas e a resistência em considerar suas histórias como literatura. “Ter um espaço pros quadrinhos reforça sua importância, institucionaliza os quadrinhos, os transforma num material de consulta importante para novas gerações que querem fazer quadrinhos ou que gostam de quadrinhos e não têm acesso a tanta diversidade de material”, diz
Em conversa recente com o Sul21, a nova diretora da BPE, Ana Maria de Souza, contou que os usuários da gibiteca foram um dos primeiros grupos que entraram em contato após ela assumir o cargo e que uma das primeiras medidas de sua gestão, iniciada em março, foi começar o processo de catalogação digital da gibiteca, já em fase de execução.
“A nossa gibiteca é muito conhecida. Para você ter uma ideia, foi o primeiro grupo que eu atendi depois que cheguei. Eles estavam preocupadíssimos que nós não fôssemos continuar e eu falei para eles que isso não aconteceria em hipótese alguma”, disse.
Guilherme destaca que, mesmo recente, a gibiteca já pode ser considerada uma das principais do Brasil, ficando atrás apenas de acervos como a Gibiteca Henfil, de 1991, que hoje está no Centro Cultural São Paulo, e de espaços criados nas cidades de Curitiba (PR), Santos (SP) e João Pessoa (PB). Além disso, pontua que tem sido procurado por bibliotecas do interior do Estado interessadas em montar espaços semelhantes.
As obras da gibiteca podem ser lidas e consultadas apenas no espaço de leitura da BPE, de segunda a sexta, 10h às 18h, e sábado, das 10h às 17h. No setor de empréstimo, localizado em um acesso lateral, há cerca de 800 títulos, a maioria repetidos, que estão disponíveis para empréstimo a sócios — a associação é feita mediante a apresentação de RG, comprovante de residência e pagamento de uma taxa de R$ 10.
A gibiteca também permanece aberta para doações de coleções e acervos pessoais. “É só vir aqui, trazer o material ou consultar através das redes sociais da Biblioteca, marcar para trazer e deixar aos cuidados do pessoal que biblioteca. A gente faz uma triagem, vê se os materiais são únicos ou repetidos, e então eles vão para consulta, para empréstimo ou mesmo para outras bibliotecas”, explica Guilherme.
Para além de ser um espaço de consulta, a gibiteca, em seus menos de dois anos de criação, também já está se consolidando como uma importante ferramenta de fomento para artistas locais, com a realização de uma série de atividades e eventos. A equipe da BPE e o curador vêm organizando desde o ano passado a Gibizeira, feira gratuita — para leitores e artistas — que combina roda de conversas, oficinas e apresentação de gibis. Em 2022, foram realizadas duas edições semestrais. A primeira contou com a participação de 25 artistas e a segunda dobrou a meta, chegando a 50, boa parte deles vindo de outros estados.
Uma nova edição está agendada para os dias 6 e 7 de maio, das 13h às 19h. A expectativa de Guilherme é que esta nova edição, cujo prazo de inscrição de artistas vai até a próxima segunda-feira (10), conte com mais quadrinistas de outros estados.
Além da Gibizeira, uma série de outros eventos vêm sendo realizados, com frequência praticamente mensal, para apresentação e conversa sobre novos trabalhos ou de artistas consagrados. Para setembro, está previsto um evento para celebrar os 75 anos de Tex, HQ criada pela dupla italiana Giovanni Luigi Bonelli e Aurelio Gallepini. “A cena dos quadrinhos estava deficitária de um espaço para as pessoas se reunirem”, avalia Guilherme, que é presidente da primeira associação de quadrinistas do Rio Grande do Sul, a Aquarios.
Ele destaca que eventos como a Gibizeira servem para mostrar que não são apenas “duas ou três pessoas” que despontam na mídia que estão trabalhando na área no Estado e que existem pessoas em diversos níveis de profissionalismo. “O legal de fazer eventos com quadrinistas é a troca entre os pares, sobre quais são as melhores gráficas, como divulgar o trabalho. Essas trocas vão formando uma comunidade, formando amizades, que são muito importantes”, diz.
Vice-presidente da Aquarios e também um entusiasta da gibiteca, Lukas Silveira acredita que o espaço é uma vitória para a cena dos quadrinhos no Estado. “As pessoas que estão iniciando vêm aqui, encontram um artista que também está no início, um artista já conceituado e ela transcende essas categorias, conversa com um e com outro, isso incentiva muito”, diz. “Eu acredito que é um grande feito o que a gente conseguiu aqui no Rio Grande do Sul, porque tem muitos quadrinistas bons aqui, que fazem trabalhos até para o exterior e que fazem trabalhos independentes e nacionais muito bem conceituados. Colocar uma gibiteca na Biblioteca Pública do Estado cria uma sinalização de importância desse cenário, para não ser uma coisa muito underground, que está dispersa”.
A dupla destaca que o RS tem uma tradição na produção de quadrinhos que remonta ao menos à década de 1950, mas que ainda assim há grande dificuldades para os artistas entenderem os quadrinhos como uma possibilidade de profissão. Uma das questões que enfrentam é colocar um valor na arte que produzem.
“É complicado também para a gente estabelecer valores, porque é uma coisa bem fora do contexto das pessoas. Elas não entendem quanto de trabalho, quanto de demanda de trabalho, de tempo, isso rende. Tanto pelo fato de que é pensado como uma coisa marginal, como uma coisa infantil, talvez uma baixa cultura”, diz Guilherme. “Uma pessoa chega para ti e diz: ‘eu queria que tu fizesse uma história sobre tal coisa’. Tu já tem roteiro? Não, precisa fazer tudo. Então, tu vai elaborar desde a ideia concepção, vai fazer toda a pesquisa, vai fazer todo o roteiro, toda a narrativa, o rascunho, o lápis, a arte final, a cor. É um trabalho que não é valorizado. Só que o que a gente percebe, como amamos muito fazer história em quadrinho, gostamos muito dessa narrativa, a gente acaba fazendo por amor. Tudo bem, pode fazer por amor também, mas o profissional também precisa ser valorizado”, complementa Lukas.
Neste sentido, a oportunidade de encontrar outros quadrinistas que compartilham das mesmas dificuldades e de angústias semelhantes, independente do estágio da carreira em que se encontrem, acaba transformando a gibiteca em um espaço acolhedor, onde essa troca de informações acontece.
Confira mais fotos da Gibiteca:
Fonte: Sul 21 – Por: Luís Gomes/Sul 21 – Fotos: Luiza Castro/Sul21