‘PL encoraja os estupradores a continuarem violando essas meninas’, dizem especialistas

Projeto de lei equipara aborto a homicídio e criminaliza o procedimento realizado após 22 semanas de gestação

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Ato contra o PL 1904 em Porto Alegre. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Sul 21 – As maiores prejudicadas pelo Projeto de Lei 1904, que teve a urgência aprovada na semana passada pela Câmara dos Deputados, serão as meninas vítimas de estupro. Essa é a avaliação de pesquisadoras da área dos estudos de gênero para o texto, que tem sido chamado de “PL do Estuprador” pelos seus críticos e durante a onda de protestos que vêm ocorrendo no Brasil em razão de prever uma pena maior para vítimas de violência sexual que abortam do que para seus estupradores.

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O PL 1904, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e de outros 32 parlamentares, incluindo os gaúchos Bibo Nunes (PL) e Franciane Bayer (Republicanos), prevê que meninas e mulheres que vierem a fazer o procedimento após 22 semanas de gestação possam ser criminalizadas mesmo em casos de estupro e equipara o procedimento ao crime de homicídio, com penas de seis a 20 anos de reclusão. Esta punição seria maior do que a prevista para quem comete crime de estupro de vulnerável (de oito a 15 anos de reclusão). Até o momento, a legislação brasileira não prevê um limite máximo para interromper a gravidez de forma legal.

Defensores do projeto de lei argumentam que estabelecer o limite de realização do aborto nos casos em que é permitido por lei a 22 semanas de gestação é necessário porque esse é o período estimado em que há viabilidade fetal, que é a capacidade do feto viver fora do útero, nascer e ficar vivo.

Clara Wardi, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) e mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília, com pesquisa voltada para as relações entre gênero e raça, destaca que, especialmente no caso das meninas estupradas, o PL praticamente inviabiliza o acesso ao aborto legal porque a gravidez gerada pelo abuso, em geral, se manifesta tardiamente, não dando tempo para o procedimento ser realizado antes da 22ª semana.

“A realidade das meninas estupradas no Brasil é de que essa violência é fruto, principalmente, de integrantes da família. Então, essa gestação demora um tempo a ser identificada, a criança demora um tempo a perceber essa violência, comunicar essa violência para os seus cuidadores, porque, como eu disse, a violência se passa dentro de seus lares e é muito comum que essas gestações avancem. Então, esse PL praticamente obriga que essas meninas vítima de violência tenham esses filhos de seus estupradores no Brasil”, afirma Clara.

Na mesma linha, Maíra Kubuk Mano, professora do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que a principal barreira para o acesso ao aborto em caso de estupro de crianças é o fato de que as vítimas demoram a compreender o que aconteceu com elas.

“Elas podem saber que foi ruim, que elas não gostaram, que elas não quiseram, que elas sofreram algum tipo de violência, mas elas não têm, muitas vezes, a consciência de que isso pode gerar uma gestação. Então, em muitos dos casos só é possível entender que a criança está grávida depois dos três meses de gestação, porque é quando o corpo começa a dar sinais mais evidentes. A criança não vai saber elaborar sobre isso, falar, comunicar o que aconteceu e dizer que acha que está grávida. Muitas vezes, acontece logo que a criança começa a menstruar. Então, a questão do prazo é fundamental para garantir o direito a essas crianças de terem acesso à interrupção da gestação, o que está previsto desde 1940 no Código Penal”, diz.

Neste sentido, avalia que o PL deixa principalmente as crianças em situação de vulnerabilidade. “Elas vão se ver obrigadas a levar adiante uma gestação indesejada decorrente de estupro e podem também correr risco, inclusive de morte, porque gestações infantis são mais perigosas, por não ter o desenvolvimento corporal completo de uma pessoa adulta”, diz

Clara Wardi aponta que, em média, 20 mil meninas com menos de 14 anos engravidam por ano no Brasil — conforme dados do DataSUS de gestações entre 10 e 14 anos –, das quais 74% são negras, e que toda a relação sexual com menores de 14 anos é considerada como estupro de vulnerável. “A gente está falando de 20 mil gestações por ano que são frutos de estupro. Esse PL institucionaliza, pior do que isso, ele encoraja os estupradores a continuarem violando essas meninas”, diz.

Já no caso das mulheres adultas, estabelecer o prazo em 22 semanas conflita com as dificuldades que muitas encontram quando precisam recorrer à Justiça para garantir o direito ao procedimento. “As mulheres têm que percorrer um calvário para conseguir ter o direito ao aborto legal. Então, às vezes também a questão do prazo é impactada por isso. E, por fim, em relação às mulheres com risco de morte, não é logo no início da gravidez sempre que se sabe que a má formação fetal pode levar a um risco de morte materna. Isso pode acontecer em diferentes etapas da gestação”, diz Maíra.

Clara avalia que estabelecer um prazo para a realização do aborto nos casos permitidos por lei é fruto de desconhecimento da realidade da violência contra mulheres e meninas no Brasil. “Não reconhecem que a grande maioria dos estupradores de meninas jovens são pessoas da família, de mulheres também, que essas gestações demoram a ser identificadas e comunicadas, e desconhecem o sistema de saúde pública de seu próprio País, em que existem uma série de barreiras geográficas para acesso ao aborto legal. As meninas e mulheres, muitas vezes, têm que peregrinar para outros estados para acessarem os serviços e também encontram uma série de barreiras institucionais dentro do serviço de saúde, de profissionais. Com todos esses entraves institucionais, geográficas e também do estigma, até a mulher, a menina, a pessoa que gesta decidir por esse aborto, o tempo passa, o tempo da decisão, o tempo das viagens, o tempo de se acessar outro serviço, de aguardar a resposta de uma decisão judicial”, diz.

Para a professora Maíra Kubik Mano, o PL 1904 é mais um sintoma de que o Brasil funciona em uma cultura de estupro, em que a mulher muitas vezes é responsabilizada pelo crime. “Ah, mas ela tava com uma roupa tal, uma saia não sei o quê, ela me olhou, ela deu mole, ela tava bêbada’. Então, a estrutura societária brasileira funciona por meio da cultura do estupro. A violência é a principal forma de manutenção das hierarquias de gênero no Brasil. E aí, quando a gente vê um PL como esse, que, de certa maneira, celebra a cultura do estupro, porque permite ao estuprador ter uma pena menor, caso ele seja encontrado, o que muitas vezes não é, do que uma mulher que sofreu estupro, que tem uma gestação indesejada e que gostaria de interrompê-la. Então, as consequências são tenebrosas sim, vão desde risco à vida até uma humilhação permanente, uma revitimização, um filme de terror”, diz.

Clara Wardi destaca que o PL 1904 não é um fato isolado, pelo contrário. O monitoramento do Cfemea indica que há outra centena de projetos em tramitação na Câmara e no Senado que visam reduzir o direito ao aborto legal no Brasil. “De fato, esse projeto não é um projeto isolado, ele é um projeto entre centenas”, diz.

Por outro lado, avalia que o fato deste PL estar sendo amplamente discutido é uma oportunidade que representantes institucionais têm de reafirmar que o aborto legal é um direito e que esta mobilização pode reforçar a pressão contrária ao projeto de lei. “Como o presidente do senado, ministras e ministros de estado e vários parlamentares também de dentro do Congresso reconhecem o aborto legal, que eles realmente repensem as suas estratégias de legislação e de convocação de seu eleitorado. Que seja baseado no respeito e no reconhecimento dos direitos já conquistados dessa população, mulheres meninas e pessoas que gestam no Brasil”.

Maíra pontua que, há pelo menos 10 anos, existe uma onda conservadora no Brasil, que tem, sim, entre suas pautas ataques a direitos reprodutivos, sexuais e da população LGBTQIA+. Contudo, ela pondera que o ataque aos direitos reprodutivos precede esse período e, além disso, esses são os primeiros direitos a serem rifados.

“A gente não conseguiu aprovar o direito ao aborto na Constituinte de 88, quando tinha uma mobilização muito grande do movimento de mulheres e do movimento feminista. Na eleição de 2010, por exemplo, a questão do aborto surgiu quando a Mônica Serra foi acusada de ter feito um aborto enquanto morava no Chile, o Serra então candidato a presidente, e a Dilma teve que fazer uma mensagem aos evangélicos dizendo que se comprometia a não mexer nessa pauta, embora fosse naquele momento a primeira mulher a ser eleita presidente do Brasil. O Lula, na eleição de 2022, fez uma fala ainda no período pré-eleitoral de que aborto era uma questão de saúde pública e teve que voltar atrás publicamente. Então, no que diz respeito aos direitos reprodutivos, eu não acho que seja o momento de uma ofensiva conservadora, eu acho que é algo permanente que diz respeito à formação da sociedade brasileira e que dificulta muito o avanço nas pautas dos direitos reprodutivos”, afirma.

Por outro lado, avalia que este movimento conservador no Brasil também cresceu como uma reação aos atos feministas de 2015, que tinham como pauta a ampliação dos direitos reprodutivos. “Eu acho que, inclusive, esse momento conservador que a gente vive também tem a ver com o ascenso do movimento de mulheres, do movimento feminista ou quanto de enfrentamentos a gente tem feito na sociedade. Então, acho que vai ser um próximo período bastante duro, mas também de muitos enfrentamentos. Acho que as mulheres, as feministas, as pessoas que gestam estão organizadas para resistir a essa ofensiva”, diz.

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