MPF pede reparação coletiva por danos causados aos indígenas do RS durante a ditadura

A União, a Funai e o Estado do RS são apontados pelo MPF como responsáveis por crimes contra a humanidade

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O MPF se vale de documentos de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) conduzidas em 1967, 1968 e 1977 para apontar a violência sofrida pelos povos indígenas. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Sul 21 – No último dia 26 de março, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação civil pública contra a União, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Estado do Rio Grande do Sul pedindo reparação às comunidades indígenas Kaingang e Mbyá-Guarani do estado. O pedido foi feito em função da violência empregada contra os povos indígenas durante as décadas de 1960 e 1970, principalmente no período da ditadura militar. Entre as medidas de reparação, o MPF quer que seja realizada uma cerimônia com pedido público de desculpas e que os entes acusados paguem R$ 60 milhões em indenizações. A ação civil pública foi distribuída à 9ª Vara Federal de Porto Alegre.

O documento ajuizado pelo MPF reúne, ao longo de quase 150 páginas, diversas evidências da violência sofrida pelos indígenas gaúchos. São provas da remoção forçada dos povos de seus territórios tradicionais, do trabalho análogo à escravidão a que foram submetidos e da espoliação dos recursos naturais dos seus territórios. A ação foi ajuizada dias antes de o Brasil conceder as primeiras reparações coletivas da história, ao pedir desculpas aos indígenas Krenak e Guarani Kaiowá por perseguições na ditadura militar.

Ao evidenciar todas as violações de direitos humanos perpetradas contra os indígenas na ditadura, o MPF diz que as ações narradas constituem crimes contra a humanidade, “razão pela qual merecem o máximo repúdio pela Justiça Federal”. Foram verificados escravidão, transferência forçada, prisão, tortura, agressão sexual, perseguição de um grupo por motivos étnicos e atos que provocaram grande sofrimento físico e mental aos indígenas. Por isso, segundo o Ministério, há “a necessidade de reparações que permitam o fortalecimento da identidade e da autoestima dos indivíduos pertencentes aos grupos envolvidos; o fortalecimento de seus modos de vida e a garantia do direito à memória, visando à não-repetição das violações perpetradas”.

A usurpação das terras indígenas se deu, principalmente, durante uma suposta reforma agrária realizada em 1962. Conforme o MPF, “o Estado do Rio Grande do Sul, na década de 60, foi o principal agente esbulhador das áreas indígenas localizadas no Estado”, o que acarretou na remoção compulsória de diversas famílias indígenas de suas terras. A terra indígena Votouro Kaingang, por exemplo, teve sua área reduzida de 3 mil para 1,8 mil hectares na época.

O MPF se vale de documentos de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) conduzidas em 1967, 1968 e 1977 para apontar a violência sofrida pelos povos indígenas. Além disso, uma das principais evidências utilizadas é o relato de Jader de Figueiredo Correia, que presidiu a CPI de 1967 para investigar as irregularidades no Serviço de Proteção ao Índio (SPI). O período de regência do SPI é conhecido pelos indígenas do Rio Grande do Sul como o “Sistema do Panelão”. Tratou-se de uma modalidade de trabalho análoga à escravidão, em que poucos se beneficiavam do produto comercializado. Em troca do trabalho na lavoura e na abertura de estradas os indígenas recebiam comida, servida em um panelão. Muitos indígenas foram obrigados a abandonar suas roças familiares e trabalhar exclusivamente para o posto indígena.

Em seu relatório, cuja repercussão inclui o encerramento do SPI e a criação da Funai, Figueiredo detalha: “Nesse regime de baraço e cutelo viveu o SPI muitos anos. A fertilidade de sua cruenta história registra até crucificação, os castigos físicos eram considerados fato natural nos Postos Indígenas. […] Abatem-se florestas, vendem-se gados, arrendam-se terras, exploram-se minérios. Tudo é feito em verdadeira orgia predatória”.

Para o MPF, “as graves violações aos direitos humanos às comunidades indígenas no Rio Grande do Sul apontadas no denominado Relatório Figueiredo revelaram uma política assimilacionista perpetrada pelos governos através do SPI, condizente com o pensamento médio da época, mas implementada com um grau de brutalidade que chocaria qualquer pessoa com a consciência não degenerada”. Com a criação da Funai, houve um avanço no tratamento dos indígenas, o fim do “Sistema do Panelão” e a imposição de penas menos cruéis. Mas continuaram as práticas fundamentais do SPI, com princípios típicos do regime militar.

A quantia de R$ 60 milhões a ser paga em indenizações foi calculada, na ação civil pública, da seguinte forma: R$ 40 milhões é o valor atualizado referente aos estoques de soja e de madeira em tábuas mantidos e registrados pela Funai em 1977. Os produtos foram retirados de terra indígena com trabalho escravo. O MPF ressalta que o montante é “certamente muito inferior ao valor real dos recursos naturais extraídos das terras indígenas gaúchas num período de dez anos”. A esse valor, somam-se R$ 20 milhões que devem ser aplicados em conta específica em favor das comunidades indígenas Kaingang e Guarani no Rio Grande do Sul, por dano imaterial coletivo causado pelas violações de direitos humanos.

Por: Bettina Gehm

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