Entidades definem como escravidão moderna o modelo de terceirização flagrado em vinícolas e lavouras

0
A revogação da lei que alterou as leis trabalhistas no país e regulamentou as terceirizações foi apontada na quarta-feira, 22, na audiência pública da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, como um dos fatores que desencadearam os casos de flagrante de trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves, onde 210 trabalhadores prestavam serviço terceirizado às vinícolas da Serra Gaúcha, e também em Uruguaiana, há poucos dias, onde 85 pessoas, incluindo crianças e adolescentes foram resgatadas em trabalho escravo nas lavouras de arroz. Esse padrão de trabalho foi definido pelas entidades do movimento negro como a “escravidão moderna”.
Presidida pela deputada Laura Sito (PT), a comissão reuniu em audiência pública para debater o combate ao trabalho análogo à escravidão em serviços prestados às vinícolas na Serra Gaúcha, por solicitação da deputada Luciana Genro (PSOL), autoridades dos órgãos de fiscalização do trabalho no RS e também do judiciário, responsáveis pelos dois flagrantes nas últimas semanas, em Bento Gonçalves, envolvendo três vinícolas, e em Uruguaiana, em duas lavouras de arroz. Diversas entidades do movimento negro, dos direitos humanos, sindicais e da sociedade civil debateram o tema, que terá continuidade no âmbito da Comissão de Representação Externa para avaliar as condições de funcionamento do sistema estadual de combate à escravidão e às suas formas análogas a partir da operação na Serra Gaúcha, presidida pelo deputado Mateus Gomes (PSOL).
De início, Laura Sito informou que levou aos ministérios, em Brasília, o flagrante de trabalho escravo no RS, na Defensoria Pública da União e junto ao Conselho Nacional de Justiça para efetivar a responsabilização penal ao crime de trabalho análogo à escravidão. A tipificação desse crime depende de regulamentação do Congresso Nacional, o que já está em curso através de iniciativas parlamentares, avisou. Ela mostrou o avanço dessa prática criminosa no país, que “fere a dignidade humana”, com o registro de 622 pessoas resgatadas nos três primeiros meses deste ano, quase a metade delas no RS. Disse que o trabalho escravo tem cor, 92% são trabalhadores homens e 88% são negros. A reforma trabalhista promoveu a precarização e informalidade do trabalho e não ameaça os lucros das empresas em casos de multas, que não ameaçam o padrão de lucratividade dos negócios comparados aos reduzidos custos trabalhistas. As vinícolas, por exemplo, assumiram a multa por danos morais de R$ 7 milhões, mas registraram lucro anual e R$ 1 bilhão, observou. A presidente da CCDH esteve em Bento Gonçalves e também em Uruguaiana, os dois locais flagrados com trabalhadores em situação de escravidão.
Luciana Genro conduziu a audiência e disse que o tema continuará em debate na Comissão de Representação Externa para ações no sentido de efetivar no estado o combate ao trabalho análogo à escravidão. Ela também atribui ao descumprimento das leis trabalhistas e o trabalho degradante o aumento de casos no país e no RS, e alertou que esse avanço encontra os postos de Auditor Fiscal do Trabalho com o seu menor contingente em 28 anos no estado. Defendeu a “persecução penal eficaz daqueles que praticam essa forma abominável de trabalho, prática relacionada com o racismo da sociedade”.
As vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi foram convidadas mas enviaram correspondência em que declaram que estão colaborando com as autoridades públicas para a apuração dos fatos. Também a prefeitura de Bento Gonçalves enviou nota, detalhando as condutas assumidas a partir do flagrante de escravizados em alojamento na zona urbana da cidade serrana.
Fiscalização e flagrante – Pelas instituições públicas federais e estaduais, responsáveis pelas ações de resgate das 395 pessoas flagradas em trabalho análogo à escravidão, manifestaram-se o gerente Regional do Ministério do Trabalho e Emprego em Caxias do Sul, Vânius Corte, que detalhou o histórico da operação. Ele revelou que nunca tinha visto um “pacote completo” como esse, de falsas promessas, subtração de salário, endividamento, ameaças e tortura, “situação que envolveu até serviço da área da segurança pública”, o que está em análise pela Corregedoria da BM. “É isso que acontece com os terceirizados, 90% dos casos de trabalho escravo são de terceirizados”, disse.
De Uruguaiana, o procurador do Trabalho Lucas Santos Fernandes, coordenador regional da CONAETE, relatou que as ações em Bento e em Uruguaiana contaram com o respaldo da assistência social para acolhimento dos trabalhadores. Ele reforçou que a multa imposta às vinícolas levou em conta o lucro das mesmas, e não o faturamento. Reiterou que o MPT entende que houve culpa das vinícolas e negligência na fiscalização, razão pela qual foram responsabilizadas pelo TAC. Disse que já assinou a ordem de pagamento de R$ 2 milhões pelas vinícolas aos trabalhadores, com prazo para a efetivação do pagamento.
A promotora de Justiça Gisele Müller Monteiro, coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos, da Saúde e da Proteção Social, referiu a ação integrada dos órgãos institucionais nesse caso, afirmando que “a rede está organizada e articulada”. Sobre a fala do vereador de Caxias do Sul, disse que foi ajuizada ação civil pública por dano moral coletivo.
Já o auditor fiscal do trabalho e chefe do Setor de Inspeção do Trabalho na gerência de Uruguaiana, Vitor Siqueira Ferreira, que coordenou o resgate dos 85 trabalhadores em arrozeiras, no dia 10, disse que a operação foi união de forças do MPT, MTE e PF, a partir de denúncia de acidente de trabalho de um adolescente de 14 anos, em situação de trabalho degradante e acima de suas condições físicas, tendo sido atingido por foice de mão. “O adolescente foi abandonado a própria sorte”, depois de enfrentar as piores formas de trabalho infantil.
A coordenadora-geral do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e secretária executiva da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, Andreia Minduca, explicou que o trabalho escravo “coisifica” as pessoas, que são transformadas em objeto e instrumento para o lucro do centro produtivo, “é grave violação de direitos humanos”. E ressaltou que é preciso recompor o número de fiscais. Também o Conselho Nacional dos
Direitos Humanos se manifestou, e a Defensoria Pública da União, através do Defensor Regional dos Direitos Humanos no RS, Daniel Mourgues Cogoy, um dos subscritores do TAC do Carrefour. Ele informou que a DPU ingressou no dia 8 de março com mandado de injunção no STF para regulamentação do artigo constitucional que trata da desapropriação de terras utilizadas para fins de trabalho escravo.
Movimento Negro – Pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra (Codene), Marcio Oliveira denunciou que o órgão não é respeitado e os TACs, no que diz respeito às indenizações, desrespeitam as questões racistas.
Pelo Movimento Negro Unificado, Felipe Teixeira, que é policial, observou que além da responsabilização das vinícolas, o estado, o município e a União, além das terceirizadas, devem sofrer sanções.
Rodrigo Medeiros, do Conselho Estadual dos DH, apoiou a demanda do Codene e disse que levou a questão ao MPT. Também representantes do UNEGRO, Central Única dos Trabalhadores, Frente Negra Gaúcha, Frente Quilombola RS, Associação Satélite de Prontidão, Associação de Juristas pela Democracia e participaram da audiência.
Arquitetura da impunidade – A professora Jane Saldanha, da Unisinos, disse que o tema retrata a “arquitetura da impunidade”, que leva movimentos globais em favor de criação de tratado internacional para direitos humanos e empresas, o que exige esforços para criar marcos globais para responsabilização desses atores privados. Ela referiu o Guia para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico e para Alimentação e Agricultura, “representa orientação para atuação responsável das empresas e visa contribuir para reduzir a chamada arquitetura da impunidade que circunda no mundo as atividades privadas”.
Parlamentares – Bruna Rodrigues (PCdoB) atribuiu os dois casos ao histórico da escravidão no Brasil e à forma como “os corpos negros foram trazidos”, com reflexos até hoje na sociedade. Como mulher negra da periferia, entende que além da responsabilização dos envolvidos, é preciso debater o racismo vinculado ao trabalho escravo e um novo pacto social em defesa do trabalho digno.
Elton Weber (PSB) pediu rigor da lei na punição da empresa que enganou os trabalhadores, e destacou a importância do trabalho dos órgãos de fiscalização. Disse que é comum na região da Serra a presença de grupos de outras regiões que vão em busca de trabalho sazonal quando enfrentam períodos de seca em suas localidades, mas se deslocam de forma autônoma, desvinculados de empresa.
Guilherme Pasin (PP) também refutou “toda atividade e trabalho que afronte a dignidade da pessoa humana” e pediu compreensão “às complexidades”, destacando as afirmações do MPT e MT de que “os atos não foram realizados dentro das vinícolas e nos seus locais de trabalho, mas no espaço da empresa de terceirização de mão de obra”.
Matheus Gomes (PSOL) observou que acompanha o avanço do trabalho análogo à escravidão no país nos últimos seis anos uma espécie de “revisionismo para contestar até mesmo a escravidão no Brasil, para dar base às transformações no mundo do trabalho”, como foi a reforma trabalhista, as terceirizações e da Previdência, “a base para os fatos trágicos ocorridos no RS”. Nesse contexto, disse que o padrão atual do capitalismo, de exploração extrema, promoveu a inclusão dos negros de forma subalterna, a partir de modelos de tempos arcaicos, o que ele identificou nas atividades iniciais da Comissão de Representação Externa sobre o tema.
Manifestaram-se ainda as deputadas federais Fernanda Melchiona (PSOL/RS) e Reginete Bispo (PT/RS), a deputada Sofia Cavedon (PT) e o deputado Adão Pretto Filho (PT), que defendeu a revogação da lei da reforma trabalhista e da precarização do trabalho, sugerindo como pauta prioritária da Câmara Federal.
Fonte: Agência de Notícias – Por: Francis Maia – Foto: Celso Bender

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui